Azar Crônico

Escrever cura: e já passou da hora de curar o luto

29 de setembro de 2021

Nove anos. Meu Deus. Nem acredito que estou viva. Passei a semana me perguntando: o que falta liberar desse luto, meu pai? Por que eu já não aguento mais sofrer como se fosse morrer todos os anos. Mas, claro que a resposta veio: escrever. Nunca escrevi sobre isso. Nem aqui, nem em caderno nenhum. É meio louco pensar, por que eu sempre soube que escrever era a minha forma de curar. Então, pode ser que esse seja o primeiro de uma coletânea de milhares de textos. Ainda não sei prevêr o quanto pode demorar e ser intenso limpar isso. Mas, vou começar do começo. Por que eu preciso escrever até esgotar.

30 de setembro, 2012 – por volta das 9h40

O telefone fixo não parava de tocar. “Que saco”, pensei. “Cadê esse povo?”, estariam no mercado talvez? Abri a porta do quarto e olhei em direção a porta de entrada da casa. Pelo vidro do meio da porta dava de ver que o carro não estava lá. “Meu pai tá no hospital”, o pensamento foi imediato. Acelerei o passo, entrei no quarto dos meus pais e tirei o telefone do gancho. Minha mãe fungando do outro lado da linha disse: “Dá um jeito de vir para o João Paulo”. É um hospital da minha cidade. Um hospital caótico. “Puta que pariu”, pensei. Se meu pai está no João Paulo, a coisa está bem pior do que posso imaginar. Liguei para o meu namorado da época, pedindo mil perdões por incomodar aquela hora de um domingo, mas implorando por uma carona para o hospital.

Vesti qualquer coisa que apareceu pela frente, mas me lembro bem do que era. Um jeans skinny e uma camisa marrom com borboletas rosa e branca. Corri para a esquina de casa, torcendo que ele chegasse o mais rápido possível. Eu nem sabia o que estava acontecendo, mas já tava chorando. Por que eu sabia que ele estava muito mal e eu só conseguia pensar que o ouvi acordar na madrugada e que talvez eu pudesse ter feito algo que o impedisse de ter ido ao hospital. “Por que você ta chorando?”, uma voz feminina soou atrás de mim. Eu odeio dialogar com desconhecidos, principalmente se estou triste ou com dor.

Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu.

Eclesiastes 3:1

“Meu pai está no hospital”, respondi ao me virar e dar de cara com duas mulheres da igreja evangélica que tinha ali. Por que posso ser introspectiva, mas meus pais me criaram para ser educada com os outros.  “Posso fazer uma oração?”, perguntou. E confesso que eu não sou a maior fã da religião da moça, mas quem sou eu para colocar meu ego a frente de uma oração?  Ela falou, falou e eu não ouvi uma só palavra. Eu só conseguia chorar e pensar “cadê esse menino que não chega nunca?”. Tudo em mim gritava pelo colo do meu pai. Quando ela terminou a oração, abriu a bíblia em uma passagem aleatória e o ex namorado estacionou o carro. “Tenho que ir”, disse. “Deixa só eu ler essa passagem?”, falou quase que em tom de súplica. Deixei.

Mas, bastou uma frase para eu me perder. “Tudo tem o seu tempo determinado”, é o mesmo que “tudo tem sua hora” Todo pai tem aquele ditado que é característico dele, né? O do meu pai era esse. Ele falava “filha, para de tentar apressar as coisas. Tudo tem sua hora. Vai chegar sua hora de pintar a unha de vermelho, de namorar, de usar maquiagem”… Cresci ouvindo isso. Até por que, eu sou a pessoa mais ansiosa que você pode conhecer. Então, quando ela falou aquela frase, eu sabia. Entrei no carro, bati a porta e desabei. “Meu pai vai morrer hoje, fulano”, falei entre um soluço e outro. “Não fala isso, vai ficar tudo bem”, me consolou o tal do ex.

por volta das 11h40

“Não, você não ta entendendo. Meu pai vai morrer hoje e ele acabou de me avisar que chegou a hora dele”. E eu sabia que tinha sido exatamente isso. Meu pai costumava contar uma história de que meu bisavô avisou meu avô quando ia morrer e ele fez o mesmo comigo.  Cheguei no hospital segurando a bronca, eu não podia desmontar, tinha mãe ali. Os enfermeiros vieram duas vezes, falaram com ela. Trouxeram os pertences dele nesse processo. Na hora de dar a notícia mesmo, me chamaram. “Não posso entrar junto?”, minha mãe falou. Dava para ver a dúvida na cara do enfermeiro, ele sabia que ela não aguentaria. O médico parou na frente da porta que dava para onde meu pai estava. Enquanto contava o passo a passo irrelevante de como eles agiram, uma enfermeira abriu a porta atrás dele e eu consegui ver por cima de seu ombro.

Meu pai. Morto. “E ele não aguentou”, finalmente falou como se nenhuma de nós já não tivesse entendido. “Você ta mentindo”, minha mãe falou entre os dentes. “Ah, não, eu não vou dar conta de lidar com isso”, pensei. E ela repetiu mais algumas vezes a mesma frase e o médico me olhou em súplica. Moço, eu só tinha 16 anos. Eu não dava conta de segurar essa barra. Sei que não era a sua intenção, mas aquele olhar fez com que eu bloqueasse todo o meu processo de luto. Eu tinha que ser forte, na minha cabeça. Por que se eu caísse, pioraria tudo. Dessa forma, engoli toda a angústia, toda a saudade, todo o medo do futuro e ativei o piloto automático, mas isso já é assunto para outro post.

Tudo tem sua hora

Como eu disse, em 9 anos não parei de sofrer por esse luto. Mas, reviver essas coisas mentalmente antes de escrever, fazem com que eu perceba quais aprendizados eu deixei de digerir no processo do luto não vivido. Por exemplo, sempre achei que não tinha tido tempo de me despedir do meu pai. Entretanto, escrever faz eu perceber que, da nossa forma, eu me despedi. Sempre tivemos uma ligação surreal. Inclusive, ele sabia como eu me sentia ou o que eu queria, mesmo que eu não abrisse a minha boca. As vezes eu estava em um ponto da casa e sentia ele lá e quando eu ia ver, ele estava em outro lugar, só pensando em ir me ver aonde eu estava. Sendo assim, ele sabia que não iamos mais nos falar e mandou aquele recado para que fosse a nossa despedida.

Esses dias, ouvindo o podcast Vênus, no episódio do Carpinejar, ouvi a Cris Paiva falar como ela prepara a filha para que caso ela venha a falecer, a filha não tenha desespero além do luto. E foi exatamente como meu pai me criou. Afinal, papai foi pai avô. Ele tinha 50 anos quando eu nasci. Então, meu pai sabia que não me veria crescer. Me preparou como quem prepara um soldado para a guerra. Tinha muito medo de alguém me fazer mal e ele não estar por perto para proteger. Portanto, não tive desespero somatizado com o luto, graças a ele. Esse ponto do “Tudo tem sua hora”, me acendeu o alerta para a minha própria ansiedade. Estou vivendo várias coisas que, relembrar desse ensinamento, me faz ter a certeza de que tudo acabará bem se eu souber esperar o momento da colheita. E eu vou saber esperar.

Por hoje, é isso. Escrever cura.

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1 Comment

  • Reply Nossa despedida de mentira: um adeus digno ao meu pai | Ré Menor 3 de outubro de 2021 at 01:46

    […] se você leu o primeiro texto da saga de liberar o luto, sabe que não tive a chance de me despedir de verdade do meu pai. Ou seja, depois do […]

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