Essa é a nossa despedida de mentirinha.
Na madrugada do dia 30 de setembro, ouvi meu pai acordar. Estava lendo algum livro em pdf no celular, debaixo das cobertas, para a luz não refletir no teto, já que não tinhamos forro em casa. Eu tinha medo dele me brigar por estar acordada até tão tarde lendo. Ele tinha medo que eu estragasse os meus olhos naquela brincadeira. Eu senti uma vontade enorme de levantar e dar um beijo nele. Dizer o quanto eu o amava. Muito, muito. Sempre fui muito carinhosa com meus pais, mas naquela noite achei melhor dormir do que ir até lá. Para evitar chateação pra nós dois. Aproveitei e dormi. Mas, mais ou menos no mesmo horário, meu pai infartou. Ele mesmo conseguiu se recuperar e só fomos saber disso em um exame que ele fez no hospital.
Só que bastou essa informação, para eu internalizar que 1- eu poderia ter me despedido direito do meu pai e; 2- talvez eu tivesse salvado ele, se tivesse percebido que ele estava infartando. Carreguei essa culpa em silêncio por 9 anos. Salve um ou dois amigos, ninguém sabia. Em 2021 comecei a terapia e a abordagem (acho que é assim que chama) que a minha psicóloga usa, é o EMDR. Acho que o dia da morte do meu pai foi o meu primeiro reprocessamento. Minha psicóloga maravilhosa, me fez entender que eu não tinha culpa de nada e que eu estava apenas cumprindo uma ordem do meu pai, indo dormir para não chatear ele. Mas, eu queria tanto ter salvado ele, sabe? Sei que isso é puro capricho, que ele cumpriu a missão dele e que a vida é lá do outro lado mesmo. Só que a saudade dói demais.
Nossa despedida: minha versão ideal
Aliás, se você leu o primeiro texto da saga de liberar o luto, sabe que não tive a chance de me despedir de verdade do meu pai. Ou seja, depois do reprocessamento, eu acabei criando uma histórinha, de uma viagem no tempo, em que eu volto para me despedir dele. Me permito ter a nossa despedida. Eu sei que é muito bobo tudo isso e não existe essa chance, mas eu vou deixar guardadinho aqui, por que de alguma forma, isso acalenta meu coração. Mesmo que só exista em minhas palavras e blocos de anotações.
30 de setembro 2012, mais ou menos 02h20 da manhã
Eu estava de volta ao meu quarto da adolescência. As três prateleiras de livros, feitas com tanto zelo pelo meu pai, quase me prenderam por tempo demais ao chão. Vi meu corpo adolescente amontoando embaixo das cobertas e fiz o possível para não fazer barulho quando sai do quarto. Consegui ver também, a silhueta do Frajola, dormindo tranquilamente no cantinho da cama. Meu coração doeu mais ainda de saudade. Afinal, tinha esquecido completamente que voltar no tempo me traria meu gatinho também. Frajola faleceu 5 anos depois do meu pai e confesso que não sei se meu coração estava pronto para tanto.
Abri a porta com muito cuidado, por que todo fã de Harry Potter sabe os perigos de mexer com o tempo. Caminhei lentamente até a sala, de alguma forma tinha medo do que encontraria ali. E se eu tivesse voltado para o momento exato que ele estava infartando? O corredor parecia longo demais e aquele barulho de nebulização me causava falta de ar. Irônico, não? Parei por um segundo na ponta do corredor e lá estava meu pai. Sentado em sua velha mesa de escritório, com a máscara no rosto. Franzindo o cenho no minuto em que percebeu minha presença. Meus olhos marejaram e eu tive vontade de gritar o quanto eu o amava.
– Te acordei? – Perguntou.
E eu segurei para não transbordar em lágrimas antes de chegar até ele. Dei mais alguns passos e lá estava eu, finalmente ao seu lado. Nossas mãos se abraçaram e sentir o meu pai de novo me roubou o ar. Que droga, era impossível que ele não sentisse que tinha algo de errado. A gente sempre sempre sentia o emocional do outro. Ele sabia, eu sabia, nós sabiamos. Mas, nada diriamos.
– Eu já tava acordada, pai. Preocupa não. Não tô conseguindo dormir. Vim só te dar um beijo e dizer que te amo. – Disse, antes de meus lábios selarem na sua testa. Minha mão escorreu pelos fios lisos e embranquecidos do meu pai, que abriu um sorriso, afastando a máscara do rosto. Ele apertou minha mão e deu um beijo nela como sempre fazia.
– Eu sou apaixonado por você.
Ouvir aquelas palavras mais uma vez era como ouvir uma sinfônia inteira. Me sentia viva por inteiro. Como se tivesse levado um choque eletrizante. Caralho, como era bom me sentir amada de novo.
– Eu também, pai. Eu também. Descansa, ta? Você é o melhor pai do mundo. – Quando virei as costas pra me encaminhar de volta ao corredor, ele me segurou e disse:
– Engraçado, por um minuto você me pareceu tão mais velha. – o nó pesou na garganta mais uma vez. Eu disse. Ele sabia. Um risinho de “fui descoberta” escapou e no olhar dele entendi que meu pai sabia perfeitamente que eu tinha voltado para me despedir.
– Impressão sua pai. Boa noite. – Dei uns passos em direção ao corredor e, antes que eu pudesse desabar, meu pai me chamou mais uma vez.
– Filha, nosso amor não é dessa vida. A gente se vê em breve.
O barulho da nebulização recomeçou e ficou cada vez mais distante enquanto eu segui no corredor, aos prantos, em busca da fenda do tempo que me trouxe aqui. Portanto, eu finalmente podia respirar aliviada, pois essa era a nossa despedida.
Pai, eu sou apaixonada por você, se cuida.
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