Em 2014, a cidade de Porto Velho, Rondônia, e seus arredores foram afetados por uma grande cheia. O motivo? Até hoje não se tem certeza. Há quem diga que foram apenas causas naturais. Há quem diga que as duas hidrelétricas presentes no Rio Madeira, Jirau e Santo Antônio, são as culpadas. Várias famílias ficaram desabrigadas por bastante tempo, distritos e parte da capital ficaram completamente mergulhados nas águas barrentas do Madeira.
Recolon é um solo de dança contemporânea que se propõem a falar sobre os impactos negativos que essa região sofreu com a cheia. O trabalho foi criado pelo ator e interprete, Leonardo Scantbelruy. E recebeu interlocução de duas pesquisadoras da dança. A Elisa Schmidt, de Santa Catarina, que tem uma pesquisa voltada para a desfiguração, e a Gilca Lobo, de Rondônia, que tem uma pesquisa voltada para a expressão do corpo ribeirinho na dança contemporânea. O projeto foi contemplado pelo Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna 2014.
No final de julho de 2017, Recolon foi apresentado na Espanha, durante o Emergentes – 6° Encuentro Internacional de Jóvenes Creadores en Artes Escénicas, realizado no Parque Olivar del Castillo de Mairena del Alcor, em Mairena del Alcor, Sevilha.
Qual o ponto de partida da pesquisa que resultou no Recolon?
Em 2014, através de algumas observações de alguns impactos negativos da enchente. O processo de criação teve muita pesquisa de campo. Eu fui em algumas comunidades que foram atingidas pela enchente, onde muitas pessoas ficaram desalojadas. Foi bastante sensível, ter esse olhar onde as pessoas estavam completamente desoladas, sem suas identidades culturais, sem suas casas. Com pessoas desaparecidas, entes queridos, filhos. Suas plantações e casas inundadas, enfim. Foi completamente humano e sensível ter esse contato real com esses impactos.
Quanto tempo demorou o processo de pesquisa, orientação e montagem?
Foram 2 anos visitando algumas comunidades, em intervalos semestrais. Onde eu fui para Cujubim, Nova Mutum, Vila Nova de Teotônio, Nazaré e Candeias. Pude a partir daí presenciar os impactos, ter uma convivência com essas pessoas afetadas, agricultores, pescadores. Paralelamente a isso, aconteceram as interlocuções voltadas para as pesquisas das orientadoras. Eu tentei afunilar essas linhas de pesquisas de acordo com a temática que eu estava me propondo a abordar. O trabalho começou a distância, onde eu fazia ensaios gravados e enviava para as interlocutoras que me enviavam orientações para considerar antes do próximo ensaio. Por conta disso, foi um processo bem demorado. Até que teve o período em que as interlocutoras vieram para Manaus, para ter um contato direto nos ensaios. Foi um período bem rico e proveitoso pra mim. Foi onde o trabalho recebeu um impulso.
E o processo de desfiguração?
A desfiguração foi muito importante. Eu parti dela para esse trabalho. Há uns dois anos atrás eu assisti um espetáculo da Elisa Schmidt, atual interlocutora do trabalho, que se chama “Entre terras”. O espetáculo tem essa modalidade desfigurativa, em que a interprete se apodera da argila para realizar máscaras desfigurativas. É através da desfiguração que eu consigo expressar toda a perda de identidade que esses ribeirinhos, as pessoas que foram desenraizadas, sofreram. É através dela que eu trago essa perda, a falta de reconhecimento. Ela começou com alguns experimentos com argila, aí eu tentei trazer elementos mais contextualizado. Trouxe a goma de tapioca, que foi o primeiro experimento, mas não deu certo. Aí passei para a pasta de macaxeira, que foi dando um resultado melhor. A partir daí fomos acrescentando outros elementos, como a casca da própria macaxeira, tinta, terra. Para gerar uma máscara desfigurativa mais pertencente a região e que causasse mais impacto.
Você realizou vários ensaios abertos para o público em geral. Qual a importância desses ensaios?
Os ensaios abertos aconteceram em diversas zonas de Manaus e tiveram a justificativa de fazer com que o público fosse parte da construção da obra. Então, eu convidava as pessoas para assistirem, para que elas dessem suas sugestões. Eu considerava, quando eram pertinentes. Assim, o público passou a ser co-criador do trabalho. Começaram a ter noção do passo a passo, do avanço que o trabalho vinha recebendo. Foi um processo muito importante, realizado em diversos espaços e lugares da cidade. Dessa forma eu podia saber como esse espetáculo funciona em lugares diferentes e para públicos diversos. Tiveram pessoas que acompanharam desde o primeiro ensaio aberto, essas pessoas tiveram o conhecimento sobre o caminho que o Recolon estava trilhando.
Qual o intuito de Recolon?
O intuito desse trabalho é trazer a reflexão de como a cidade ficou abalada. De como os ribeirinhos foram atingidos de forma negativa. Com toda essa ação da natureza e política, que acabaram devastando e desfigurando o cotidiano de muitos cidadãos de Porto Velho e da região do município.
Como foi apresentar durante o Emergentes, na Espanha?
Foi incrível. Envolveu muita coisa, muito estresse, muita ansiedade. E deu tudo certo! Foi maravilhoso, era uma ocasião que tinha gente do mundo todo fazendo o que gosta. Fazendo suas poéticas, seus espetáculos e contribuindo. Foram várias leituras, de diversas partes do mundo, muitas referências. Além de conscientizar essas pessoas do que está acontecendo na Amazônia. A galera se revoltou junto, se emocionou também. O que fica mesmo são as relações, os sentimentos, os diálogos, as trocas. Poder conhecer trabalhos da América Latina que eu nunca tinha visto, por que aqui em Manaus não temos a circulação desses grupos.
Ao fim de cada apresentação o Leonardo procura ouvir bastante o público para saber como o eles estão entendendo e reagindo ao Recolon. Depois conta um pouco sobre as questões que rodeiam o espetáculo, sobre o impacto da abordagem. O público acaba conhecendo mais sobre essa situação. Os públicos de outras regiões, que não tem noção do que a gente passa aqui, passa a conhecer mais a nossa história. Passa a ter consciência, a entender que a cidade passa por um descaso muito grande, de uma maneira geral. O debate complementa a obra e ressalta que é importante falar sobre o assunto, que não podemos esquecer que várias pessoas perderam tudo que tinham ali e poucas recuperaram. É um espetáculo lindo e muito emocionante. Só nos resta torcer que ainda realizem muitas apresentações dele em vários lugares do Brasil e do mundo!
Você pode acompanhar mais sobre Recolon no site oficial e no facebook do projeto. :)
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